08/04/2014

Isto é Angola

"No Matabicho. Os brioches, o café, o leite, a omelete de chouriço, e a edição do dia do Jornal de Angola. Como era hábito, passou os olhos pelas últimas do desporto, bebeu o café num trago só e deu três garfadas na omelete, deixando ficar o resto no prato. Por olhar ficaram as notícias sobre a economia, os despachos do governador de Luanda, o que se discutiu no parlamento, entre outros acontecimentos – assim como os brioches e o leite. Pegou na pasta, nas chaves do carro e quando se preparava para se despedir da sua jovem namorada com o habitual xoxo nos lábios e as recomendações paternais, incutindo-lhe responsabilidades e deveres a ter com o lar na sua ausência, tomou um susto: Ela que nunca lia nada além da revista Caras, de repente se encontrava toda absorvida, lendo para si as notícias sobre a legalização da poligamia no Quénia.
A caminho do escritório, no trânsito, não pronunciou nenhuma palavra ao motorista, que por sua vez estranhou o comportamento do patrão, mas manteve o silêncio, obedecendo com redobrada cerimónia e protocolo, não pronunciando mais do que as subservientes e sensatas palavras “sim chefe” às ordem que lhe foram sendo dirigidas: “muda de estação”, “aumenta o AC”, “desliga o rádio”. Não havia nada que o motorista pudesse fazer ou dizer. Aliás, o instinto lhe dizia que aquele semblante trombudo só podia ter origem em dois planetas: o das garinas ou dos kumbus. Tanto um como outro, tabus na relação empregado/patrão. Melhor seria não interromper e deixar as suas ideias se perderem no labirinto da sua mente. E assim foi. O caminho, que por causa do trânsito de Luanda já é longo, se fizera quase infinito, a passo de tartaruga, num silêncio tumular e num frio siberiano.
Na hora do almoço, sem apetite. Decidiu tirar o resto do dia e visitar a filha caçula, uma desculpa, sabia que àquela hora a criança estaria no colégio. O que queria era o consolo da mulher que lhe dera a alegria da sua primeira e única menina, assim como todo afecto, sem cobranças, sem nunca perguntar porquê, como ou quando lhe daria a graça da sua visita. Era a amante perfeita, a eterna “outra” submissa e de uma paciência sem fundo. Sempre com o sorriso aberto, mesmo quando na rua, escutava ofensas cabeludas por andar com homem casado, que de tão graves e aguçadas, fariam corar o próprio Satanás. Mas ela, no seu silêncio estátua de abano malanjino, respondia com a mais cristã das acções, dando a outra face. Dando o corpo, como da vez que as cunhadas do seu homem lhe fizeram espera, uma tocaia tão bem orquestrada e violenta que se fosse escrita diriam que foi copiada das páginas do romance “Lampião e Maria Bonita”. Mas ela sobreviveu, ela e o bebé que trazia no ventre, a menina, cujo nome não poderia ser outro que não este: Maria. Chegado a casa da Amante, encontrou a mesa posta, até hoje admirava-lhe a devoção, os mimos e atenções, como esta de servir-lhe o prato mesmo quando ele não aparecia para as refeições. Por isso não lhe negava nada, dinheiro e férias em Windhoek e Nairobi. Só não lhe dava o seu sobrenome. Aquele pensamento arrepiou-lhe a espinha, e pela primeira vez se pôs na pele da amante, eternamente à espera que a faça sua mulher perante o olhar condescendente, mas não menos inquisidor, da sociedade angolana.
Depois do jantar, num ritual que se repetia há décadas, ele e a sua amantíssima esposa, afundaram-se no sofá. Ela com os olhos postos na novela e ele com o copo de whiskey na mão. Aquela pasmaceira matrimonial começava a fazer efeito, e a angústia que sentira ao longo do dia – com a namorada, a amante e a hipótese, ainda que distante, na nossa Angola “polígama” de as legalizar torná-las suas esposas perante a lei – dissipava-se lentamente. Ele era avesso à mudança, gosta tanto das coisas que se demoram que quase que lhe descobríamos um sorriso prestes a revelar-se; se nos fosse apresentado naquele exacto momento, diríamos que aquele homem era provavelmente o mais feliz dos angolanos. Tal era a harmonia que se vivia naquela sala, que se permitiu a liberdade de fechar os olhos e ressonar. Não ouviu quando a mulher mudou de canal e comentou a notícia que acabara de surgir no ecrã. “Sob as leis consuetudinárias, as mulheres não precisam ser informadas quando ele casa pela segunda ou terceira vez”. Sobressaltado, levantou-se num pulo, com uma agilidade felina que ele próprio não acreditava que ainda possuía. “O que teu deu homem!?” Perguntou a mulher alarmada. Incapaz de guardar para si o fardo da infidelidade, confessou-lhe que na sua vida havia mais do que uma, aliás, mais do que duas mulheres.  Nada que ela já não desconfiasse, mas se algum dia essa lei for aprovada pelo parlamento angolano, ela não será a única senhora dona do seu sobrenome, e isso sim, pior do que a promessa feita no altar “amar e ser fiel”, era o punhal cravado no casamento que ela tanto temia."

Por Kalaf Epalanga

retirado daqui
http://www.redeangola.info/opiniao/a-esposa-a-outra-e-a-namorada/

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